quinta-feira, 26 de maio de 2011

Eu sei, mas não devia.

Olá pesso @ll!

O texto de hoje é longo, mas vale a pena ler até o final. Caso a preguiça fale mais alto, você pode ouvir o texto na íntegra clicando aqui.

Tenham um ótimo dia e não se acostumem com tudo na vida!

Equipe Blog do CEDAL.

EU SEI, MAS NÃO DEVIA
O  texto abaixo foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio
de Janeiro, 1996, pág. 09.

                                                       
        Marina Colasanti -1972

Eu sei que a gente se
acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de
fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem
vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as
cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se
acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café
correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o
tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do
trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar
cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o
jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que
haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas
negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo
dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a
esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as
pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto
ser visto.

A gente se acostuma a coisas demais,
para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor
aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente
senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada,
a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a
gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o
que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono
atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para
preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para
esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para
poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se
perde de si mesma.


Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós,  Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

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